Filme com Meryl Streep sempre desperta a vontade de conferir como a atriz veterana se saiu. E não foi diferente com Julie & Julia, que fui conferir, mesmo sendo sobre culinária, assunto que não me interessa particularmente – apenas como ‘degustadora’. Uma dica: escolha um cinema próximo a um bom restaurante. Afinal, é tudo o que você vai querer depois de 2 horas de filme – nem precisa ser francês… 😉
No elenco, também está Amy Adams, que contracenou com Streep em A Dúvida (comentado aqui, em https://www.analista.psc.br/blog/?p=465 ), pelo qual ambas foram indicadas ao Oscar (respectivamente de Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Atriz), sem que nenhuma levasse. Julie & Julia foi classificado por um jornal como drama, em um site especializado rotulado como romance, mas, o filme é um daqueles ‘inclassificáveis’, que não se encaixam facilmente em tipos. Prevalecem momentos de comédia, mas tem sim drama e questões existenciais… Vamos então à sinopse.
No início dos anos 2000, Julie Powell (Amy Adams) é uma jovem americana casada, que acaba de se mudar com o marido para um apartamento que não é o de seus sonhos, no bairro de Queens. Seu trabalho, literalmente, a faz chorar no dia-a-dia. Quando se compara a suas amigas, executivas muito bem sucedidas, Julie sente-se pior do que poeira, em plena crise dos 30 anos. Não finaliza nenhum projeto e até acredita que tem distúrbio de déficit de atenção (DDA). A relação com a sua mãe mereceria horas e horas de análise, em qualquer abordagem psicoterapêutica… 😉
Felizmente, Julie tem um marido maravilhoso, super compreensivo que, quando percebe que ela está prestes a emburacar em uma lamentação sem fim, ou pior, em uma depressão, relembra a ela sua vocação de escrever. Ajuda-a a criar um blog e escolher o tema, que não pode ser outro senão o que mais lhe dá prazer: cozinhar. O projeto de Julie é testar um clássico da culinária americana, escrito por Julia Child, em um prazo de um ano. E quem é Julia Child?
Mrs. Child, interpretada por Meryl Streep, é uma americana que se muda para Paris com o marido, no pós-guerra. Encantada com a culinária francesa, resolve aprender a cozinhar. Para isto, tem de enfrentar a famosa barreira que franceses costumam erguer contra todos os que não dominam o idioma – e em especial contra americanos. Há também as diferenças culturais: ela, acostumada a trabalhar, tem de entrar em um mundo masculino, enfrentando duplo preconceito. Child é obstinada (talvez até com traços obsessivos) e treina, faz parcerias e consegue enfim realizar seu sonho. O prazer de preparar um prato e dominar os segredos dos temperos e suas combinações une as duas, Julia e Julie. Aprendem a duras penas, separadas, cada uma a seu tempo e em seu tempo, a como atender as suas vocações – o que já poderia gerar outro post, sobre a dificuldade que temos em descobrir ou atender ao ‘chamado’, da voz interna.
Julie se disciplina para cumprir seu prazo espartanamente. Era uma típica ‘serventless‘: não tinha empregada e, após sua jornada de trabalho, tinha de se desdobrar para atender ao modo de preparo francês – que não é dos mais simples… Os amigos mais próximos de Julie são privilegiados, convidados para desgustarem as receitas, diariamente testadas e postadas no blog. Mas o blog era mais do que isto pois nele Julie também expressava suas dificuldades e emoções. No início dos anos 2000, a mania dos blogs ainda estava começando e é interessante ver o quanto Julie tem dúvidas sobre se é lida ou não – e também a sua satisfação na medida em que começa a interagir com seus ‘leitores’. Satisfação e dúvida sentidas até hoje por quem resolve partilhar com ilustres desconhecidos :). Era um co-terapeuta, sendo a terapeuta principal ela mesma. Há uma leve crítica não só a quem escreve qualquer bobagem – mas a quem acompanha tudo isto…
Se você ainda não viu o filme e não quer saber como termina, pare por aqui – depois do trailer haverá spoilers…
Baseado em fatos reais, em dois livros, a roteirista manteve o ‘desencontro’ Julie e Julia, não caindo na tentação do final feliz americano. Nem ao menos tentou justificar a recusa da velhinha – que devia ser simpática, como foi ao longo da vida – em conhecer sua ‘cria’. O que será que aconteceu para que ela erguesse esta barreira? Vamos às elocubrações?
Será que Julia Child, na ‘vida real’, acessou o blog e acompanhou a trajetória da heroína Julie Powells? Se não o fez (e isto realmente não sei, alguém dispõe desta informação???) pode ter imaginado que Julie a queria destronar. Então tanta agressividade pode ter sido puro medo. Ou mesmo ranzinzice. Uma recusa (arquetípica?) do velho (senex) de se abrir e interagir com o novo (puer). A mitologia grega mostra isto através de deuses que, por não quererem dividir o poder, matam. Julia Child, com sua declaração a um repórter, bem que tentou ‘apagar’ Julie, diminuir sua importância. O que não deixa de ser um tiro no pé: quantas pessoas não conheceram Julia Child apud Julie Powell? Fato é que Julia, que não teve filhos – e que ficou sabidamente frustrada com isto, como vemos em duas cenas -, não soube lidar com a ideia de uma herdeira ‘virtual’, não planejada. Em vez de herdeira, enxergou uma usurpadora.
Sorte de Julie, que não soçobrou, nem se deixou ‘matar’. Como bem lembrou seu marido (um ‘santo’, como ela costumava dizer, sob seus protestos), ela construiu uma Julia Child, fantasiou, projetou valores que talvez não existissem na Julia da vida real. Talvez Julie esperasse encontrar em Julia a mãe amorosa e incentivadora que gostaria de ter tido – muito diferente daquela que se apresentava ao telefone, mas por quem até se nutre uma simpatia, ao final da projeção. Mudando a si, Julie conseguiu melhorar todas as relações à sua volta. Uma receita e tanto.
Thays, finalmente vi o filme. Ao contrário de vc, o tema da culinária me interessa muito. Achei muito interessante a forma como Julia resolve “traduzir” a sofisticada culinária francesa para a praticidade americana. E mais: como os franceses a olham torto por conta da imagem da cultura culinária americana… Fiquei curiosa pelo resultado final. Ao final de cada sessão de cinema, deveria haver sim um restaurante por perto, mas com as comidinhas de Julia. Mas a questao que me captou (olha ai o prato cheio para a minha futura terapeuta rsrsrsr), foi o fato de que as duas nao tinham filhos. O fato de nao desempenhar o papel de mae, fez com que Julia se refugiasse em outras realizaçoes. Já Julie, nao me pareceu muito preocupada com isso, mas com a sua nao realizaçao no ambito profissional. Julia foi cutucada pela gravidez da irma. Noticia boa, mas a pura evidencia de que ali havia um buraco em sua vida, que acabou preenchido por outra cria – o livro de receitas. Julie tambem padece de um vazio, as frustraçoes profissionais, a falta de um objetivo que de fato a realize. Talvez a questao maternal tb esteja inserida ali, mas de outro lado, o lado de sua mae. Julie eh mais filha do que candidata à mae. E como filha, se ve numa situaçao de realizaçao. Vejo exatamente como vc – a realizaçao que nao foi para a mae, tomou Julia emprestada como modelo. Mas o blog eh a sua cria. Eh disso que nós mulheres precisamos, realizaçoes, produto acabado, elogios, aprovaçoes. É aí que nos sentimos felizes.
Eu assisti o filme duas vezes e amei! Sempre tenho interesse por filmes que envolvam culinária em seu tema central, pois acho realmente a arte de cozinhar algo mágico. O filme vai bem além disso, mostrando como duas mulheres, em busca de um objetivo de vida, encontram sua razão de ser no talento que têm e não sabiam que tinham – pelo menos não tão a sério.
O filme nos dá alento e esperança de que cada um de nós tem um dom e só precisa descobrir isso. Cada um pode ser feliz à sua maneira e isso foge às convenções sociais.
Eu simplesmente sou apaixonada por esse filme!!!
Oi, Adriana,
concordo com o que você disse, inclusive passei a gostar mais do filme depois que saquei também esta questão da vocação.
Obrigada pelo seu comentário, volte sempre!