Antes mesmo da estreia de Foi apenas um sonho, fiquei super interessada em assistir a este filme, já que estudo os relacionamentos amorosos desde os tempos de Mestrado. “Ah, como assim? Relacionamentos se estudam?” 😉 Para quem não sabe, a Psicologia do Amor se constitui em uma área de estudos dentro da Psicologia.
Voltemos ao filme, que se baseia em um romance. Recebeu três indicações para o Oscar – de melhor ator coadjuvante, figurino e direção de arte, porém a Academia deixou de fora Kate Winslet (que concorre por outro filme, O leitor, que devo comentar em breve) e Leonardo Di Caprio, que encarnam muito bem o casal em crise, os Wheeler.
O título original é, a meu ver, muito mais interessante do que o que recebeu no Brasil: Revolutionary Road. A tal Estrada Revolucionária é o irônico endereço do casal Frank e April Wheeler, que se conhece e apaixona à primeira vista. Ela se encanta com todos os sonhos dele e o acha o homem mais interessante que já conhecera. Já vimos este filme antes? Dezenas de vezes, inclusive na vida real, próximos de nós. Se é que alguém consegue escapar a este enredo…
Mas quais são os sonhos de Frank? Só conhecemos um: morar em Paris onde, imagina, todos são felizes. Com tanta dificuldade de lidar com a realidade, April engravida. Casam-se.
Um corte no tempo leva os espectadores à fase de crise, quando já estão tentando viver segundo o american way of life. Morando nos subúrbios de Connecticut, nos anos 50, Frank, empregado na mesma empresa em que seu pai trabalhou durante toda sua vida (até se aposentar sem grande reconhecimento), questiona sua vocação. April, dona de casa, tem como frustração não ter se tornado atriz . A comunicação entre ambos inexiste – mais por dificuldade de April, que se mostra um raro exemplar feminino: não gosta de discutir a relação!!! 😉 O tédio existencial ronda o casal, que esqueceu como sonhar.
O aniversário de Frank é um marco e serve como um balanço para April. Ela volta a sonhar e o envolve. O casamento volta a ter o viço dos tempos iniciais. A cumplicidade do casal aumenta e todos – no trabalho e na vizinhança – invejam a harmonia; apesar de acharem meio imatura a decisão de vender tudo e ir morar em Paris.
Várias leituras para este drama romântico são possíveis… Pela filosofia existencial, podemos refletir sobre o sentido que April e Frank dão às suas vidas, ou melhor, na ausência de sentido. E também nas escolhas e responsabilidades que têm sobre elas. April Wheeler me remeteu à Laura Brown, de As Horas, personagem interpretada por Julianne Moore. Ambas as personagens causam a mesma estupefação na plateia, ainda maior nas pessoas que optam por uma vida padrão, sem grandes riscos emocionais, optando pela estabilidade a qualquer preço.
Em termos junguianos, pode-se dizer que o apaixonamento e o encantamento inicial de April com Frank é a projeção típica de animus (sua contraparte masculina inconsciente), presente no início da maioria dos relacionamentos. Porém, é sua impossibilidade de, ao longo do casamento, lidar com a constatação de que o que projetou no marido não era exatamente o que imaginou na fase inicial que põe o casamento na situação crítica a que assistimos. Além disto, April tampouco corresponde ao arquétipo de mãe tradicional. Seus sentimentos e comportamento causam estranheza. Ela nada tem em comum com a deusa Demeter, por exemplo. (Aliás, nada como assistir a filmes que rendem ‘questionamentos’ em cinema! É ótimo para avaliar a reação da plateia, do público padrão. Assisti em uma sessão à tarde, sentada próxima a uma senhora que resmungava, protestava com as questões de April. Como podia questionar tanto ‘uma vida tão boa’, ‘um marido tão lindo’, uma ‘casa tão bonita’? Por que se entediava? Por que não podia simplesmente ser feliz? Cá entre nós, as mesmas pessoas que se indignam com o comportamento de April,condenam todas as mulheres que fogem ao script tradicional de ‘mãe de família’)
Mrs. Wheeler encarna o pensamento de Elisabeth Badinter que, em O mito do amor materno, propôs que nem todas as mães têm o famoso amor de mãe, que seria socialmente construído. A plateia se incomoda e resmunga. April remete também à Emma Bovary, de Flaubert. Não deve ser coincidencia que, com outra personagem, a mesma Kate Winslet faz um elogio à Madame Bovary (em Pecados Íntimos, no meio de um grupo de mulheres conservadoras).
Ainda pensando ‘junguianamente’, April parece uma puella . Resumidamente, a puella – e o puer – representa, dentre outras coisas, a dificuldade de crescer, de assumir as responsabilidades de vida adulta e suas consequentes limitações. O casamento dos Wheeler renasce, com frisson, quando os dois assumem o lado puer e resolvem sonhar, largando tudo para o alto, indo contra o senso comum – seu pólo oposto, o sênex. Enquanto tomados pelo puer, não pensam nas adversidades, tudo vai dar certo. Ao mesmo tempo em que o casamento que quase acabara, rejuvenesce, notam-se as críticas no olhar e na fala dos amigos. Sem poder falar, deixam transparecer que discordam do projeto de inversão de papeis: April propõe trabalhar para sustentar a casa, enquanto o marido descobre seu talento. Este olhar conservador, oposto ao puer, é o arquétipo do senex (que origina a palavra ‘senil’).
Não deixa de ser engraçado que justo o personagem ‘surtado’, em crise, é o que melhor compreende o projeto revitalizado de ambos e admira o casal. Eles riem deste fato – e aí a letra de “A balada do louco” (Se sou muito louco, por eu ser assim, mais louco é quem me diz e não é feliz…) pode adiantar a quem ainda não viu o filme como o jovem casal se sente.
Porém, talvez a tese de que todo mundo tem seu preço, ou , no final das contas, porque um pouco de estabilidade não faz mal nem mesmo a Frank, ele é tentado. Aceita sua vocação, descoberta meio que ao acaso, muda seus planos. Mas não consulta a mulher. Sabendo antecipadamente que seria uma tremenda decepção, deixa para ‘comunicar’ em um papo informal, na praia, com um amigo, para que ela ouvisse. Dá para imaginar o resultado? Espero que não, afinal, muitos detalhes foram aqui omitidos para não perder o impacto.
E como não há bem que sempre dure, a crise volta ao lar dos Wheeler…
O filme fica então como mais um questionamento sobre como podemos – se é que podemos – manter os sonhos de início de relacionamento ao longo dos anos. Será que podemos manter as idealizações sobre nossos parceiros ou, não, que temos de aprender a amá-los, acima de todas as decepções? Talvez a resposta seja que não há receita de bolo …
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