O filme Coco antes de Chanel pode ser visto como um caso de individuação clássico, ‘de livro’. Ah, mas do que estou falando mesmo? ‘Traduzindo’, individuação é um dos conceitos centrais na Psicologia Analítica, de Carl G. Jung. O psiquiatra suíço a mencionou pela primeira vez em 1916 e, de forma muitíssimo resumida, o processo de individuação é ‘tornar-se o que se é’. ‘Como assim?’.

A ideia da individuação gera até hoje várias discussões filosóficas. Algumas correntes questionam que seja uma tendência inata, preexistente, propondo que há liberdade total para a pessoa se construir ao longo da vida. Bem, segundo Jung, não nascemos como uma ‘tábula rasa’, totalmente em branco. Apesar de, até o final da vida, não definir se acreditava em múltiplas existências (o que cabe mais, talvez, na proposta da abordagem transpessoal), Jung propôs que, ao nascer, já se receberam registros do mundo exterior, da família, da sociedade, ainda no útero. O inconsciente coletivo, outro conceito junguiano, também exerceria influência no processo de individuação. A concepção inicial de individuação propunha que ela acontecia a partir da meia idade, quando a pessoa não precisava mais lutar para adaptar-se ao meio. Já teria resolvido questões iniciais básicas (teria casado, concluído os estudos, conseguido se emancipar dos pais e ter seu espaço). Adaptada, poderia ir em busca de si mesma, do que deixou pra trás, adiado. Seria uma urgência de se autorrealizar. Alguns pós-junguianos questionam que o processo se dê tardiamente, contra argumentando que já acontece na infância. Levando em consideração que o mundo mudou muito desde a morte de Jung, em 1961, nada mais natural que suas teorias sejam revistas. Talvez o timing para amadurecer seja outro totalmente diferente.

Mas, por que o filme me remeteu a este processo de individuação? Mesmo com um início de vida bem difícil, contrariando algumas teorias psicológicas, Gabrielle Chanel não se restringe ao seu ambiente inicial. Juntamente com sua irmã, foi deixada em um orfanato, quando bem pequena, após a morte da mãe. Seu pai não mais voltou para visitá-las. Seus talentos foram desenvolvidos a partir de um ambiente sombrio. Não ficou na lamentação (pelo menos, se ficou, não se vê no filme, aí teria de ir em busca das biografias…). Bem antes de atingir a meia idade, a vemos enfrentando condições adversas, não se acomodando, criando. “Individuando-se”.

Coco ousou, foi à frente do seu tempo. Frente a dificuldades materiais e barreiras impostas, reagiu com a criatividade. Ela aplicou a expressão ‘se te derem um limão, faça uma limonada’. Mas seu processo, pelo que se testemunha ao longo do filme, parece totalmente espontâneo, natural, não tendo sido induzido ou estimulado por uma análise (uma das formas possíveis de auxiliar a individuação). Talvez, quem sabe, pela literatura, algo a que ela dedicava horas de lazer. Ou pelo Self. Ela amadurece, cresce, cria, expande-se além da Europa. Eterniza-se. Floresce, como a Psicologia Positiva diria.

Um pedido a quem tiver maiores detalhes biográficos: partilhe aqui – e pode corrigir alguma ideia que tenha vindo erradamente do filme… 😉

Há críticas ao tom comercial do filme, como se fosse um merchandising da Maison. Não chegou a me incomodar; pra mim era até esperado algo do tipo. O mérito principal foi mostrar que, mais do que uma estilista, Gabrielle Chanel foi uma revolucionária.

O filme não retrata toda a vida de Coco e há críticas negativas por ter deixado de fora um período delicado: na época da II Guerra, Chanel se envolve com um oficial nazista. Fechou a Maison, foi para a Suíça e, ao voltar para a França, já não teve tão boa aceitação. Mas, graças ao prêt-à-porter, conseguiu se manter. Esta passagem de sua vida gera ataques – não a seu trabalho, que permanece incontestável. Surpreendi-me com a menção ao nome de Chanel como uma cortesã em um livro, devido aos relacionamentos amorosos que manteve ao longo da vida. No filme, só dois foram retratados: o que viveu com Etienne Balsan e com Boy. Ambos influenciaram seu estilo, em alguns momentos bastante andrógino, criado a partir da necessidade de recorrer ao closet dos amantes para se vestir. E foi Boy que ajudou, inicialmente, com capital.



Mmle. Chanel revolucionou não só o guarda-roupa como também o comportamento sexual das mulheres, podendo recusar casar em uma época em que o casamento era cobrado das mulheres. Mais um pouquinho da vida dela aparece em outro filme francês, que ainda vai estrear no Brasil, sobre o relacionamento affair com Igor Stravinsky – mas já foi exibido também no Festival, em outubro de 2009. Decididamente, Gabrielle Chanel abriu caminho para muitas mulheres, com uma vida amorosa bastante agitada, pelo que tem sido ventilado. Não podemos esquecer que ela foi contemporânea de Jung e ousou mesmo no início do século 20. Por estas e outras, mesmo quem não é fashionista, pode gostar do filme.

Como este não é um texto acadêmico, paro por aqui, esperando a opinião de vocês – discordando inclusive. E, aos junguianos, deixo uma pergunta: se Chanel tivesse sido analisada por Jung, será que ele diria que ela era possuída pelo animus? 😉

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Thays Babo é psicóloga e Mestre em Psicologia Clínica pela Puc-Rio e atende no Centro (Rio)

Coco Chanel: individuação ou florescimento?
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3 ideias sobre “Coco Chanel: individuação ou florescimento?

  • 21/11/2009 em 16:24
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    Oi Thays. Quando vi o filme, o analisei com olhos de antropologa, menos focada na personalidade de Chanel, mas na sociedade de entao. Pra mim, eh muito bom ter a visao psicologica de Mademoiselle. O mais interessante eh que a sua irma teve uma biografia semelhante. E talvez tb tivesse o mesmo talento. Qual a diferenca? Acho que vc tem razao qdo diz que o fato de ter que adaptar as roupas dos namorados estimulou a sua criatividade. Mas tb acredito que ela tenha tido uma sensibilidade incrivel ao perceber que o estilo de vida da mulher que abria novas frentes de sociabilidade mudara radicalmente, precisando de outro tipo de vestuario. Tem um teorico, Veblen, que nota bem como as roupas femininas desconfortaveis marcavam uma posicao social – posicao de quem nao precisava trabalhar. Soh que na epoca de Chanel, o lazer ganhava espaco, e era tao demarcador de posicao social, quanto nao trabalhar. Daih a “sacaçao” de Chanel. Mas ela estava na hora certa e no lugar certo pra ser quem foi. Nao fossem seus poderosos contatos, e ela estaria fadada ao ostracismo. Fez toda a diferenca a sua amizade com uma atriz famosa, bem como seus affairs com Etienne Basan e Boy Capel. Mas o fato de nao ser uma mulher como as outras (tanto nas biografias que eu li quanto pude perceber no filme) sempre esteve mal resolvido para ela. Sempre me pergunto se ela, de fato, nao preferia ter tido um marido e filhos, enfim uma vida compativel com a de outras mulheres do seu tempo. Pagou um preco pela ousadia. Bom para o lado feminino da humanidade. Bjus. Solange

  • 21/11/2009 em 16:24
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    Ah…sim.. jah ia me esquecendo. Soh pra finalizar, acho que a sua analise era o ponto que faltava para eu entender porque Chanel teve a sacaçao que teve e sua irma nao. Eis a diferenca que soh a psicologia poderia dar conta. Bju. Solange

  • 24/11/2009 em 16:24
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    Solange, assisti a uma entrevista do Lagerfeld no GNT, você viu? Ele falou que não vê nem lê nada sobre Chanel, que o que é importante para ele é a ideia que ele faz dela, que os filmes e livros não dão conta do que ela foi.

    Adorei tudo o que ele falou (não só sobre ela, mas sobre moda, inspiração etc). Apesar de bastante esnobe, é muitíssimo inteligente, filosófico e engraçado também.

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