Rio de Janeiro, calor infernal, jogos importantes na reta final do Brasileirão, mas a sala de teatro do shopping em área nobre da cidade estava lotada pra assistir a uma hora de Fernanda Montenegro no palco, encarnando Simone de Beauvoir. O espetáculo Viver sem tempos mortos é um desafio e tanto para os neurônios quem não conhece o histórico de Beauvoir e compareceu só pra conferir o desempenho da atriz. Fernandona deu conta do recado com louvor, sem entediar o público, que a vê sentada durante 60 minutos. Boa parte dos quais remetendo-se à sua metade intelectual: Sartre, com quem formou o casal mais provocador do século 20. Talvez até o mais inteligente – e certamente o mais emblemático de uma geração.
De uma forma muitíssimo sintética, o existencialismo teve seu ápice na França, no pós-guerra, popularizado pelo casal Beauvoir e Sartre.
Contaminado pelo clima da época, pessimista, frente a uma França invadida e dominada pelos nazistas, tem como conceitos fundamentais a liberdade, responsabilidade, autoria. Não era, em sua origem, materialista, mas na visão Sartreana – e de Beauvoir, bien sûr! – o existencialismo negou qualquer a priori. Focado no aqui e agora, nada de lá e então. A morte é vista como aniquiladora dos projetos.
Mas e qual papel cabe a Beauvoir no meio dos intelectuais franceses? Talvez ela tenha ficado à sombra demais de Sartre. Vivia em um meio dominado por homens – e a partir de suas pesquisas, escreveu o Segundo Sexo, em que diz logo que “não se nasce mulher. Torna-se mulher”. Também declara que o homem também tem um papel, aprendido. Não há como ignorar que mulheres do mundo inteiro, mas, em especial, ocidentais, devem muito à Simone de Beauvoir. Independe de se concordar ou não com todas suas escolhas e caminhos que ela percorreu, experimentando a liberdade (ou não?) no seu limite, pagando o preço de sua autoria.
Pode ser que tenha sido só impressão – mas acho que não – de que as experimentações amorosas e sexuais continuam chocantes para grande parte da plateia, mesmo sendo uma elite. Mesmo considerando que já acaba a primeira década do século 21. Portanto, mais de 50 anos depois dos fatos! Sempre me surpreendo como muita gente ouve sobre as guerras sem se chocar tanto como quando ouve sobre sexo…
Ok, muito antes disto, Beauvoir abriu mão de qualquer crença na essência, negando qualquer a priori, assumindo os riscos de suas escolhas, a sua solidão existencial. Com Sartre, pode descortinar muitas possibilidades impensáveis para uma burguesa católica, como ela.
Beauvoir talvez ficasse indignada com a pergunta que fica, revendo em pouco tempo sua trajetória. Mas não posso evitar. Será que a adoração que tinha a Sartre não foi muito mais limitadora para ela do que libertadora? Apegou-se a uma imagem tal que, para ser coerente, abriu mão de projetos seus – inclusive seu desejo por Sartre, que desistiu dela como parceira sexual muito cedo. Numa cumplicidade tal, desistiu de um relacionamento amoroso, nos Estados Unidos, que relata com muita intensidade, pra acompanhar as jornadas intelectuais do filosófo.
Teria sido medo frente ao risco de se lançar em um relacionamento – que poderia vir a ser algo estável?
Ficam então estas perguntas para possíveis interpretações, palpites sobre Beauvoir. Não só sobre seu relacionamento com Sartre, mas também suas colaborações para a vida de todas as mulheres, sejam feministas ou não…
25/11/2009
Existencialistas, graças a Deus…
21/11/2009
E o amor é lindo…
500 dias com ela (500 days of Summer) é um filme que questiona dois grandes estereótipos: 1)TODAS as mulheres querem porque querem compromisso sério, senão surtam (lembra de Ele simplesmente não está a fim de você? Se não lembra, veja o post aqui ) e 2) que os homens fogem SEMPRE de qualquer relacionamento mais sério, a princípio. Porém, nenhum dos dois comportamentos pode ser generalizado. Algumas variáveis sócio-econômicas interferem: idade, escolaridade, classe social, contexto familiar e às vezes a religião.
Mulheres cosmopolitas sofrem cobranças diferentes das que mulheres interioranas sofrem. Nas grandes metrópoles, podem ser protegidas pelo anonimato e viver de forma mais tranquila no celibato. Em 500 dias a jovem Summer, descolada, não tem pressa em assumir nenhum compromisso. Vive bem sua liberdade e parece não acreditar em compromisso, debochando do que é paixão. Summer racionaliza os sentimentos. E não se preocupa com rótulos, para desespero de Tom, rapaz basicamente romântico, que vive de escrever frases para cartões comemorativos. É interessante esta ‘troca’: quando Summer fala, parece um homem (estereotipado). Tom sofre como uma mulher (estereotipada também), querendo segurança e garantia. Depois do trailer, vem spoiler.
Apesar de, à primeira vista, Summer não querer relacionamento nenhum, ao final parece muito igual às mulheres tradicionais. Rende-se ao compromisso, selado com um brilhante. Foi muito mais rápida do que se poderia prever a partir da sua fala. Tom fica arrasado ao descobrir que, na verdade, ela não queria ser definida como namorada dele. Mas não dá pra ter raiva de Summer, que não mentiu. Desde o início, dizia que não queria rótulos, que achava Tom interessante, mas nunca quis definir como namoro. Com todo mundo acontece começar um relacionamento sem intenções esperando – ou não – se apaixonar no meio do caminho. Ambos apostaram nisto, mas, enquanto ela não tinha pressa de descobrir nem definir nada, Tom precisava desta confirmação. É interessante ver o desespero dele. Até o 500o dia.
Summer foi generosa ao procurá-lo para dar uma explicação, libertando-o para uma nova tentativa amorosa. Tom pode fazer um fechamento, visualizar o fim. Esta atitude dela mostrou que já estava mais amadurecida, sabendo o quanto esta conversa poderia libertá-lo.
O filme é então uma excelente opção para discutir estereótipos de gênero, relacionamentos contemporâneos e também o luto amoroso.
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Thays Babo é psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela Puc-Rio, com formação em TCC e extensão em ACT (terapia de Aceitação e Compromisso). Atende em Copacabana e no Centro do Rio, a jovens, adultos e idosos, com terapia individual, de casal e pré-matrimonial.
20/11/2009
Coco Chanel: individuação ou florescimento?
O filme Coco antes de Chanel pode ser visto como um caso de individuação clássico, ‘de livro’. Ah, mas do que estou falando mesmo? ‘Traduzindo’, individuação é um dos conceitos centrais na Psicologia Analítica, de Carl G. Jung. O psiquiatra suíço a mencionou pela primeira vez em 1916 e, de forma muitíssimo resumida, o processo de individuação é ‘tornar-se o que se é’. ‘Como assim?’.
A ideia da individuação gera até hoje várias discussões filosóficas. Algumas correntes questionam que seja uma tendência inata, preexistente, propondo que há liberdade total para a pessoa se construir ao longo da vida. Bem, segundo Jung, não nascemos como uma ‘tábula rasa’, totalmente em branco. Apesar de, até o final da vida, não definir se acreditava em múltiplas existências (o que cabe mais, talvez, na proposta da abordagem transpessoal), Jung propôs que, ao nascer, já se receberam registros do mundo exterior, da família, da sociedade, ainda no útero. O inconsciente coletivo, outro conceito junguiano, também exerceria influência no processo de individuação. A concepção inicial de individuação propunha que ela acontecia a partir da meia idade, quando a pessoa não precisava mais lutar para adaptar-se ao meio. Já teria resolvido questões iniciais básicas (teria casado, concluído os estudos, conseguido se emancipar dos pais e ter seu espaço). Adaptada, poderia ir em busca de si mesma, do que deixou pra trás, adiado. Seria uma urgência de se autorrealizar. Alguns pós-junguianos questionam que o processo se dê tardiamente, contra argumentando que já acontece na infância. Levando em consideração que o mundo mudou muito desde a morte de Jung, em 1961, nada mais natural que suas teorias sejam revistas. Talvez o timing para amadurecer seja outro totalmente diferente.
Mas, por que o filme me remeteu a este processo de individuação? Mesmo com um início de vida bem difícil, contrariando algumas teorias psicológicas, Gabrielle Chanel não se restringe ao seu ambiente inicial. Juntamente com sua irmã, foi deixada em um orfanato, quando bem pequena, após a morte da mãe. Seu pai não mais voltou para visitá-las. Seus talentos foram desenvolvidos a partir de um ambiente sombrio. Não ficou na lamentação (pelo menos, se ficou, não se vê no filme, aí teria de ir em busca das biografias…). Bem antes de atingir a meia idade, a vemos enfrentando condições adversas, não se acomodando, criando. “Individuando-se”.
Coco ousou, foi à frente do seu tempo. Frente a dificuldades materiais e barreiras impostas, reagiu com a criatividade. Ela aplicou a expressão ‘se te derem um limão, faça uma limonada’. Mas seu processo, pelo que se testemunha ao longo do filme, parece totalmente espontâneo, natural, não tendo sido induzido ou estimulado por uma análise (uma das formas possíveis de auxiliar a individuação). Talvez, quem sabe, pela literatura, algo a que ela dedicava horas de lazer. Ou pelo Self. Ela amadurece, cresce, cria, expande-se além da Europa. Eterniza-se. Floresce, como a Psicologia Positiva diria.
Um pedido a quem tiver maiores detalhes biográficos: partilhe aqui – e pode corrigir alguma ideia que tenha vindo erradamente do filme… 😉
Há críticas ao tom comercial do filme, como se fosse um merchandising da Maison. Não chegou a me incomodar; pra mim era até esperado algo do tipo. O mérito principal foi mostrar que, mais do que uma estilista, Gabrielle Chanel foi uma revolucionária.
O filme não retrata toda a vida de Coco e há críticas negativas por ter deixado de fora um período delicado: na época da II Guerra, Chanel se envolve com um oficial nazista. Fechou a Maison, foi para a Suíça e, ao voltar para a França, já não teve tão boa aceitação. Mas, graças ao prêt-à-porter, conseguiu se manter. Esta passagem de sua vida gera ataques – não a seu trabalho, que permanece incontestável. Surpreendi-me com a menção ao nome de Chanel como uma cortesã em um livro, devido aos relacionamentos amorosos que manteve ao longo da vida. No filme, só dois foram retratados: o que viveu com Etienne Balsan e com Boy. Ambos influenciaram seu estilo, em alguns momentos bastante andrógino, criado a partir da necessidade de recorrer ao closet dos amantes para se vestir. E foi Boy que ajudou, inicialmente, com capital.
Mmle. Chanel revolucionou não só o guarda-roupa como também o comportamento sexual das mulheres, podendo recusar casar em uma época em que o casamento era cobrado das mulheres. Mais um pouquinho da vida dela aparece em outro filme francês, que ainda vai estrear no Brasil, sobre o relacionamento affair com Igor Stravinsky – mas já foi exibido também no Festival, em outubro de 2009. Decididamente, Gabrielle Chanel abriu caminho para muitas mulheres, com uma vida amorosa bastante agitada, pelo que tem sido ventilado. Não podemos esquecer que ela foi contemporânea de Jung e ousou mesmo no início do século 20. Por estas e outras, mesmo quem não é fashionista, pode gostar do filme.
Como este não é um texto acadêmico, paro por aqui, esperando a opinião de vocês – discordando inclusive. E, aos junguianos, deixo uma pergunta: se Chanel tivesse sido analisada por Jung, será que ele diria que ela era possuída pelo animus? 😉
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Thays Babo é psicóloga e Mestre em Psicologia Clínica pela Puc-Rio e atende no Centro (Rio)
13/11/2009
A cultura do terror
Totalmente ao acaso, abri hoje um livro que tenho há anos, chamado O livro dos abraços, do Eduardo Galeano. Achei algumas pérolas nele, algumas, de dor. Deixo uma para reflexão individual:
A CULTURA DO TERROR
A extorsão,
o insulto,
a ameaça,
o cascudo,
a bofetada,
a surra,
o açoite,
o quarto escuro,
a ducha gelada,
o jejum obrigatório,
a comida obrigatória,
a proibição de sair,
a proibição de se dizer o que se pensa
a proibição de se fazer o que se sente,
e a humilhação pública
são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família. Para castigo à desobediêcia e exemplo de liberdade, a tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia tudo com a peste do medo.
– Os direitos humanos deveriam começar em casa – comenta comingo, no Chile, Andrés Domínguez.
Galeano, E. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 1991. p. 141
Enfim, pais e mães, mestres, repensemos nossa responsabilidade nas nossas relações, nas quais exercemos poder – e como.
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Thays Babo é Mestre em Psicologia Clínica pela Puc-Rio e atende no Centro (Rio).